Íntegra da primeira entrevista exclusiva do presidente Lula concedida à BBC Brasil

14/07/2003 - 10h15

Londres, 14/7/2003 (Agência Brasil - ABr/BBC Brasil) - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva concedeu, na manhã de ontem, em Londres, sua primeira exclusiva desde que assumiu a presidência à BBC Brasil. Lula respondeu as perguntas enviadas por mais de 5 mil internautas ao site da rede britânica. O jornalista Américo Martins selecionou as principais dúvidas e conduziu um bate-papo com o presidente brasileiro que falou das reformas, dos projetos sociais, da reforma agrária, do MST. Segue abaixo a íntegra da entrevista.

BBC - Bom dia. Nós estamos dando início agora a uma entrevista exclusiva da BBC Brasil com o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. O presidente vai responder perguntas que foram enviadas pelos leitores do site da BBC Brasil na Internet, através do endereço www.bbcbrasil.com. Essa entrevista está sendo transmitida pelas emissoras de rádio que fazem parte da rede BBC Brasil em todo o País e também ficará disponível no nosso site na internet. Além disso, a entrevista será transmitida na TV, através das emissoras associadas à Radiobrás, a mais nova parceira da BBC Brasil.

Lula - Bom dia.

BBC- Presidente, nós recebemos mais de cinco mil perguntas para o senhor feitas nos sites em inglês, em espanhol e em português. Eu queria começar a entrevista com uma pergunta feita pelo Mendes Júnior, da cidade de Sobral, no Ceará, e também pelo Frank Shimada, de Okaya, no Japão. Eles querem saber o seguinte: o senhor está gostando de administrar o Brasil? Qual é a pior e a melhor parte da função?

Lula - Na verdade, eu estou realizando um sonho que eu e outros brasileiros alimentamos durante muitos e muitos anos. Portanto, não se trata de gostar ou não gostar; se trata de cumprir uma determinação que nós mesmos nos impusemos. Eu ganhei as eleições com um programa de governo, eu sabia que a situação no Brasil não era boa do ponto de vista econômico e do ponto de vista social. Eu tenho até brincado dizendo que se a situação fosse boa, eu não tinha ganho as eleições. Eu só ganhei exatamente porque a situação do Brasil estava muito mal. E eu, então, tinha consciência que nós poderíamos resolver os problemas do Brasil. Eu diria para as duas pessoas que me fizeram a pergunta que estou fazendo aquilo que eu mais queria fazer na vida, que era provar que nós seremos capazes de mudar o Brasil e vamos mudar. Eu vou fazer as políticas sociais que entendemos que podem garantir cidadania ao povo brasileiro, vamos governar tentando ajudar a parte mais pobre da população a conquistar o seu espaço e dignidade na nossa sociedade. Por isso, eu tenho pedido para o povo apenas para ter um pouco de paciência porque o primeiro ano é o mais difícil em toda e qualquer administração. Nós já sabemos o que queremos, sabemos como alcançar o que queremos e vamos alcançar. É por isso, que no meu discurso de posse eu disse que nós íamos primeiro fazer o necessário, depois o impossível. Estou tranqüilo, consciente dos problemas, mas também consciente de como encontrar a solução para esses problemas.

BBC - E o que é o melhor e o pior na função?

Lula - Olha, eu acho que o melhor de ser presidente da República é que você tem o direito de fazer propostas de mudanças que você a vida inteira reivindicou que os outros fizessem. Eu diria que o pior é a gente não ter tempo de fazer tudo que a gente quer fazer. O dia só tem 24 horas, ou seja, e quando você está fazendo metade das coisas que você pode fazer, já acabou o dia. Eu, sinceramente, gostaria de ter mais tempo para poder fazer mais coisas. Tentar compatibilizar a agenda institucional, com agenda social e ainda assim a agenda internacional, na verdade o dia precisaria ser de 36 horas ou mais para dar tempo de fazermos tudo.

CRESCIMENTO

BBC- O senhor mencionou as atividades que o País está atravessando, já vinha atravessando, que até facilitaram a sua eleição, na sua própria avaliação. A maior parte das perguntas que nós recebemos dizem respeito justamente à economia do País. Por exemplo, o Alcir Everaldo Zargo, de Bariri, questiona sobre o crescimento e Luiz Roberto Tibiriçá quer saber se o senhor não acha que a carga tributária no Brasil, e não necessariamente os juros, é que é o principal entrave para o crescimento do Brasil nesse momento.

Lula - O crescimento é uma busca quase que obsessiva do meu governo. Nós precisamos e temos consciência de que a economia brasileira precisa crescer. Agora, é preciso crescer com distribuição de renda, distribuição de riquezas, porque historicamente o Brasil cresceu muito – se você pegar de 1950 a 1980, o país cresceu acima de 7%, em média, ao ano – entretanto, não houve distribuição de renda. Por isso que se dizia que os ricos ficaram mais ricos e os pobres ficaram mais pobres. Nós achamos que o crescimento tem que ser acompanhado de uma boa política de distribuição de renda. Acontece que para você crescer e ter investimentos, você precisa ter arrecadação suficiente para isso. E nós tomamos posse com uma situação muito delicada do ponto de vista das finanças públicas. Nós colocamos ordem na casa porque, em dezembro, a perspectiva inflacionária para os próximos doze meses era de 40%, nesses primeiro seis meses nós tratamos de arrumar a casa. Agora trabalhamos numa perspectiva de uma inflação de 7% a 7,5% para os próximos doze meses. Nós começamos uma escalada de reduzir as taxas de juros e vamos. No próximo dia 17, quando estiver voltando para o Brasil, à tarde, já tenho uma reunião para discutir os grandes projetos de infra-estrutura que nós vamos fazer. E vamos buscar dinheiro onde for para ver se conseguimos realizar esses projetos.

Nós anunciamos no mês de junho e no começo do mês de julho algumas medidas muito interessantes. Nós fizemos o maior investimento para agricultura já feito na história do Brasil, anunciamos R$ 5,4 bilhões para a agricultura familiar. Em 2002, tinham sido anunciado R$ 4 bilhões, mas apenas R$ 2 bilhões foram liberados. Eu não só anunciei como dei o telefone do Pronaf (Programa Nacional da Agricultura Familiar) para que quem tivesse dificuldade de pegar o dinheiro, telefonasse diretamente para o Ministro. Porque habitualmente se anuncia o dinheiro e depois, no final do ano, o dinheiro não sai.Nós queremos que saia todo esse dinheiro anunciado para a agricultura familiar. Tem uma novidade extraordinária: não apenas o agricultor pode fazer o empréstimo, mas a sua mulher também pode ter um projeto e pegar dinheiro e o seu filho também. Acho uma novidade extraordinária.

Assumimos o compromisso de comprar a safra dos produtores da agricultura familiar do semi-árido nordestino. O povo pobre do Nordeste às vezes não planta porque não chove. Quando chove, todo mundo planta, a produção aumenta, o preço cai, então eles continuam perdendo. Então, nós estamos assumindo, enquanto o Programa Fome Zero comprar o produto dessa agricultura familiar. Anunciamos a liberação de cooperativas de crédito no Brasil para cidades até cem mil habitantes, criamos um crédito na Caixa Econômica Federal para as pessoas tomarem dinheiro emprestado, de R$ 200 a R$ 600, para ajudar a reduzir a política de juros no sistema financeiro. Tomamos muitas medidas para fazer a economia brasileira começar a crescer.

Sobre a questão da política tributária, mandamos uma proposta para o Congresso Nacional, feita de comum acordo pelo governo, pelos 27 governadores, e pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Essa proposta vai ser votada no Congresso Nacional e eu espero que, com ela, nós acabemos com a guerra fiscal no Brasil, com a sonegação, consigamos reduzir o imposto sobre a produção, permitindo que o Brasil tenha maior poder de competitividade, que tenha vantagens comparativas na sua relação comercial com outros países.

BBC - Mas o senhor acha que a carga tributária é um empecilho maior do que os juros, por exemplo, para o crescimento do Brasil?

Lula - Não, eu não acredito. Porque a carga tributária é alta. Mas se comparada a vários países do mundo, ela não é tão alta. Entretanto, o problema do Brasil é que há uma carga tributária injusta. Você penaliza hoje quem investe na produção. E nós precisamos desonerar a produção para facilitar o Brasil. E isso está contido na nossa proposta de política tributária. A unificação do ICMS, o imposto que mais arrecada nos estados, tem hoje 40 alíquotas, nós estamos reduzindo para cinco. Eu acredito que, depois de outubro, quando eu espero que sejam aprovadas as reformas, a gente esteja colocado num patamar de competitividade com o chamado mundo desenvolvido.

JUROS

BBC- Também recebemos muitas perguntas dos internautas sobre os juros. Alencar Donizeti Rosa, de São José dos Campos, por exemplo, quer saber como reduzir as taxas de juros cobradas pelos bancos e pelas empresas de crédito.

Lula- Veja, nós estamos oferecendo alternativas. No Brasil, na verdade, nós temos a taxa de juros, a Selic, que é a taxa referencial que o governo paga para os compradores de seus títulos, que está a 26%, e nós temos os juros do sistema financeiro, que é uma coisa totalmente à parte. Hoje, uma pessoa que tem um cartão de crédito está pagando por ano 212% de juros. Uma pessoa que compra a prestação uma geladeira ou uma televisão paga 160% ao ano...

BBC- Isso é aceitável?

Lula- Isso não é aceitável do ponto de vista lógico. Agora, o que o sistema financeiro faz? Ele diz que o número de inadimplentes é muito grande e que, portanto, ele tem que vender aos juros altos para poder garantir o recebimento. O que acontece é que as pessoas que podem pagar pagam por aqueles que não podem, pagam pelos inadimplentes. Nós achamos que é preciso não só criar mecanismos para reduzir a taxa de juros como incentivar, por exemplo, o sistema financeiro a investir em alguma coisa que signifique aumentar a capacidade produtiva do País, por exemplo, em habitação. Nós estamos trabalhando com isso. Criamos um "sem número" de mecanismos para baratear os juros para o pequeno crédito, para o pequeno consumidor, e eu acho que isso vai levar os bancos a reduzir a sua taxa de juros. Nós queremos, na verdade, é fazer com que os bancos também tenham uma função social de emprestar dinheiro para aqueles que gerem crescimento da economia, que gerem empregos e que gerem renda.

BBC- E a taxa Selic, o senhor acha que também vai cair?

Lula- Vai cair, vai cair porque a taxa Selic é utilizada normalmente como uma espécie de controlador da inflação. Como nós pegamos um Brasil numa situação um pouco delicada, a taxa de juros ficou a 26,5% no seu teto maior, agora começo uma escalada de redução. Nós estamos convencidos de que a inflação já foi debelada, ou seja, nós não corremos mais o risco de a inflação chegar a dois dígitos, e por isso eu acho que agora a taxa de juros vai cair sistematicamente.

BBC- Vai ser rápido isso?

Lula- Pode ser rápido, até chegar a um padrão. Veja, nós temos que ter um certo controle da economia para não deixar a inflação voltar. Ao mesmo tempo, nós temos que ter um cuidado enorme para não permitir que o Estado gaste mais do que ele tem capacidade de arrecadar. E, ao mesmo tempo, temos que investir os poucos recursos que o Estado tem de forma a gerar crescimento econômico do País. Temos de escolher com muito carinho quais os projetos prioritários e nós estamos fazendo isso tentando envolver a sociedade. É por isso que, pela primeira vez, nós estamos discutindo o Plano Plurianual, que são os projetos de infra-estrutura que pretendemos para os próximos quatro anos, discutindo com a sociedade, com os estados, com as entidades de caráter nacional, com o movimento sindical, com o Congresso Nacional.

Vamos levar em conta a necessidade de o Brasil ser pensado nacionalmente, regionalmente e setorialmente, para que a gente possa fazer justiça nos investimentos que o governo pode fazer. Queremos não desenvolver apenas uma parte do Brasil, aquela parte que historicamente tem recebido menos investimento do Governo Federal.

REFORMA DA PREVIDÊNCIA

BBC - Presidente, o Carlos Eduardo, de Poços de Caldas, Minas Gerais, quer saber o seguinte: o senhor se arrepende de ter sido contrário às reformas constitucionais anos atrás?

Lula- Não.

BBC- Por quê?

Lula- Primeiro porque é importante lembrar que o PT, já na Constituinte de 1988, apresentava reformas para a Previdência Social. Historicamente, o PT foi quem defendeu o sistema universal único para a Previdência Social. Nunca concordamos com dois ou mais tipos de previdência. Nós entendíamos que deveria ter um sistema universal em que você tivesse um teto e a partir daí você pudesse ter aposentadoria complementar para quem quisesse receber mais e pudesse pagar mais. É por isso que nós estamos defendendo hoje o fortalecimento do sistema de pensões. Um dado concreto: mandamos uma reforma da Previdência Social para o Congresso Nacional porque nós queremos fazer justiça social no Brasil. Eu tenho visto publicamente que a reforma que estamos fazendo é para garantir que, daqui a cinco, dez, quinze ou vinte anos, as pessoas posam se aposentar e receber o dinheiro. Porque, a continuar do jeito que está, os estados não terão condições de pagar a aposentadoria daqui a dez anos. Tem estado como Minas Gerais que arrecada por ano R$ 450 milhões e que paga, por ano, R$ 4 bilhões. Ou seja, arrecada apenas 10% do que paga. Isso um dia estoura. Nós temos que ter responsabilidade de fazer com que haja um novo modelo de previdência para garantir aos nossos netos ter os mesmos direitos que seus avós estão tendo hoje.

BBC - O senhor acaba de dizer que o PT sempre defendeu o sistema único na previdência. Agora, os jornais estão noticiando que os líderes de governo em Brasília estão negociando a manutenção da integralidade e da paridade das aposentadorias. Isso não cria um sistema diferenciado, não mantém um sistema diferenciado e acaba com a reforma, de certa forma?

Lula - Primeiro temos que ver qual é o papel do Congresso Nacional. Precisamos tomar muito cuidado com o que a gente fala para não produzir manchetes em jornais que não condizem com a realidade. O Congresso Nacional é o fórum em que a sociedade se manifesta, pressionando o Congresso para apresentar emendas. Pelo que eu sei, tem mais de 453 emendas para a previdência, tem mais de 400 emendas para a reforma tributária. É normal que seja assim, e é justo que seja assim, porque isso faz parte da democracia. Agora, o que acontece? O governo tem uma proposta. E ela foi feita em conjunto com 27 governadores, com o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e foi enviada para a Câmara. Qualquer proposta de mudança no projeto original enviado pelo governo terá que ter aquiescência do Governo Federal, dos 27 governadores e do Conselho.

BBC - Mas então o senhor aceitaria manter a paridade e a integralidade?

Lula - Não estou dizendo que aceito. Estou dizendo que qualquer negociação, essa e qualquer outra que for colocada na mesa para discutir pela Câmara, o governo, ao dizer não, ou ao dizer sim, ou ao dizer que não é essa nem aquela, que vai ser outra, se é que vai haver acordo, terá que ser de comum acordo. A proposta não é do presidente da República, a proposta não é do Governo Federal, a proposta, na verdade, é do Governo Federal e de mais 27 governadores de estado. Portanto, nós queremos manter a credibilidade e a confiabilidade que conquistamos junto aos governadores e eles terão que dizer se concordam ou não com qualquer que seja a mudança. Eu acho que a melhor coisa para a Previdência Social brasileira é o projeto original tal com o governo apresentou.

BBC - Até porque, se houver essas mudanças, a reforma fica muito mais pífia, não?

Lula - Veja, é que o Congresso Nacional, na verdade, se coloca como a voz da sociedade. Se a mudança na proposta do governo mudar os objetivos da reforma, realmente não tem sentido. É por isso que nós queremos preservar os princípios fundamentais da proposta original do governo

PROJETOS SOCIAIS

BBC - O Ludenrique Campos Freire, de Brasília, pergunta o seguinte: porque na área social o governo não consegue deslanchar como deslancharam, por exemplo, nas administrações do PT nos estados e nos municípios?

Lula - Primeiro eu fico feliz de ele estar falando bem dos estados e municípios. Não tem exemplo de que os nossos prefeitos e governadores conseguiram, no primeiro ano, fazer aquilo que a proposta do próprio partido que ganhou as eleições. Por uma razão muito simples, quando você ganha a eleição, no primeiro ano você trabalha com o orçamento deixado pelo governo anterior. E a definição de prioridades era outra. A distribuição de verbas era em função das prioridades de um outro governo que tinha outra concepção administrativa. O que fizemos nesses seis meses que estamos lá? Estamos preparando a base estrutural para fazer a política social que fazemos desde 1982 nos municípios brasileiros.

Criamos o projeto Fome Zero, ao qual foi destinado R$1,8 bilhão. Agora, você não consegue acabar com a fome de 43 milhões de pessoas num toque de mágica, se fosse assim não teria fome no mundo. É um processo, porque o projeto de combate à fome depende de reformas estruturais, de crescimento da economia, da geração de empregos, da reforma agrária, de uma boa política agrícola. Enquanto isso não acontece, você institui o programa de distribuição de cartão alimentação. Mesmo para você fazermos essa distribuição, temos que ter um belo de um cadastro, porque as pessoas não podem receber dois cartões. Estamos programados para cuidar disso nas mil cidades em que as pessoas estão com mais fome e tínhamos de começar com um projeto piloto. Tínhamos que pegar um projeto e tentar, a partir dele, dos acertos dele e dos erros, consertar para entrar nos outros municípios. E o sucesso é extraordinário. Se você pegar Guaribas que foi a primeira cidade em que aplicamos o programa Fome Zero. Mais de 250 crianças por mês iam para o hospital por conta de diarréia. Quatro meses depois de implantado o programa, apenas 15 crianças foram com diarréia ao hospital. Isso significa que a comida faz muito bem para essas crianças e a gente vai diminuir a mortalidade infantil.

A segunda coisa, a produção em Guaribas aumentou. As pessoas começaram a produzir mais feijão, portanto o governo vai comprar esse feijão para incentivá-los a plantar mais ainda. E o acerto desse projeto vai permitir que nós o levemos para mais mil municípios. E vamos levar de forma gradativa, porque nós temos que ir aperfeiçoando cada vez que implantarmos isso num município. Eu estou convencido que o Programa Fome Zero será um sucesso extraordinário no Brasil. Estou convencido que outros países do mundo adotarão o programa Fome Zero. Se você me perguntar qual é o ideal para acabar com a fome eu diria: o ideal para acabar com a fome é que todo e qualquer homem ou mulher no Brasil tivesse um emprego e pudesse comer às custas de seu próprio trabalho. Isso é um sonho, um ideal. Temos que garantir que as pessoas tenham acesso ao mínimo necessário. Estamos fazendo uma excepcional política de saúde, de combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil. Estamos fazendo uma fiscalização sobre o Brasil inteiro.

BBC - O senhor acha que isso está sendo bem comunicado para a sociedade, porque várias das perguntas que nós recebemos questionavam justamente o sucesso na área social?

Lula - Eu vi ainda ontem no jornal uma crítica. Há um equívoco de comunicação. Ao mesmo tempo em que a gente lançou um grande programa mostrando um novo recorde na safra brasileira de grãos, a gente anunciou um investimento de bilhões do Fundo de Garantia para Habitação. Ou seja, dois anúncios importantes no mesmo dia, um mata o outro. O que é que estamos fazendo? Eu estou com o Ministério do Planejamento e a Casa Civil trabalhando para que, na próxima semana, quando eu regressar ao Brasil, a gente faça, publicamente, uma avaliação dos seis meses de governo: o que foi feito de 1º de janeiro ao dia 1º de julho, comparando isso a vários outros períodos de outros governos do Brasil, para que a gente tenha dimensão das coisas que estão sendo feitas. Posso te garantir que as bases de um novo modelo de desenvolvimento, de um novo programa de política social, já estão colocadas. Agora, essas coisas não acontecem do jeito e com a rapidez que a gente quer. Um simples pé de feijão que você planta, você tem que esperar 90 dias para comê-lo. Nós temos de plantar as coisas agora, adubar bem para que a gente comece a colher a partir de agora.

MST E REFORMA AGRÁRIA

BBC - O senhor mencionou a política agrícola, o campo, a gente recebeu muitas perguntas relacionadas ao MST. José Vicente de Menezes, de São José dos Campos, pergunta se o senhor não acha que o MST passou dos limites e Carlos Palmero, de Campo Grande, quer saber por que o senhor usou o boné do MST.

Lula - Olha, primeiro eu devo ter umas cem fotografias com bonés do sem-terra ao longo desses últimos vinte anos. Eu devo ter umas 50 fotografias com o boné da CUT e umas cem fotografias com boné de time de futebol, boné de feiras agropecuárias que eu visito. É uma gentileza quando você recebe uma camiseta, um chapéu, um colete, você colocar. As pessoas te dão para isso. Eu sinceramente não esperava que o preconceito contra os sem-terra fosse de tamanha envergadura. O sem-terra, na verdade, tem uma luta que é justa, a luta pela reforma agrária. Nós temos o compromisso de fazer a reforma agrária e vamos fazê-la. Obviamente, vamos fazer a reforma agrária dentro das possibilidades financeiras do governo. Vamos mapear todas as terras disponíveis que o Brasil tem para poder fazer os assentamentos. O país também não tem dinheiro para comprar as terras que nós gostaríamos de comprar. Os sem-terra estão conscientes de que a reforma agrária tem que ser feita dentro de limitações de investimentos do Estado e que não pode ser como vinha sendo feito habitualmente. Porque não basta assentar. Hoje temos, eu diria, quase 80% das pessoas assentadas vivendo em situações de pobreza, muita gente vivendo de cesta básica.

Tem gente acampada há seis anos e meio, há quatro anos e meio. Temos de ter a responsabilidade de assentá-las e criar as condições para elas começarem a trabalhar. E nós vamos tentar dar ao assentamento uma nova característica. Vamos ter que fazer as chamadas agrovilas, criar condições de ter uma comunidade com hospital, com escola. Temos que combinar não só a produção agrícola, mas também um conjunto habitacional para as pessoas morarem, com água, indústria, comércio. Tem que ser algo mais moderno, que leve em conta a tecnologia, que leve em conta a capacidade de produção que as pessoas tem de ter. Por isso estamos trabalhando com mais carinho a questão da reforma agrária. Nem vamos fazer na pressa o que querem os sem-terra. Nem vamos fazer na lerdeza o que querem os que são contra a reforma agrária. Nós vamos fazer no tempo certo, porque o governo tem o compromisso de fazer a reforma agrária.

BBC- Muito obrigado.